Pães em Pipa

paointegral

 

Tonto de sono, tomava café na cozinha do hostel quando Amanda veio até a mesa e se impôs: “Você gosta desse pão? Sabe quantos conservantes está comendo? Não se preocupa com sua saúde?” Foi um ippon logo cedo e cedi, pousando o pão com manteiga, até então delicioso, no prato. “Eu tenho uma padaria aqui perto, faço pão integral de verdade, não essa coisa, passa lá”,  e sorriu, acariciando meu rosto docemente. Concordei sem palavra. Quando ela sumiu, comi o que restava, duvidando de cada mordida.

O dia passou em Pipa, Rio Grande do Norte, inacreditável. Suas praias parecem uma síntese geográfica, o encontro das falésias do sul da Bahia junta-se aos recifes de Pernambuco. E ainda há uma imensidão de dunas desenhadas pelo vento. Caminhei bastante. Já estava há quase uma semana na cidade, sem saber pra onde seguir e por isso mesmo ficando. Cíntia, amiga de um amigo que trocou o Rio por Pipa há sete meses, me apresentou a alguns de seus amigos. Em poucos dias já passava na casa de um ou outro pra conversar.

Voltava pro hostel no fim da tarde quando ouvi uma voz de mulher: “O pão! Vem comprar o pão!” Não tive dúvida de quem era. A primeira coisa que brilhava em Amanda era seu sotaque argentino, presente na voz, nas mãos múltiplas e na disposição de cultivar liberdades. Carismática, xingava, xavecava, mexia com todos. Percebi que se afigurava um crime ignorá-la. Isso ela jamais aceitaria.

Entrei na padaria pequena e decorada por tecidos e peças indianas e ela olhou nos meus olhos e me beijou os lábios. Pegou minha mão e me levou com o passo ansioso e eu me deixei ir. Passamos o balcão e fui me animando, percorremos um corredor e ela me olhou de novo com um sorriso sacana. Eu me achava o maior sortudo do mundo quando ela abriu uma porta e disse: “Paco, esse é Marco, um jornalista de São Paulo”.  Cumprimentei-o constrangido pela surpresa.

Paco era seu namorado e sócio. Estavam juntos há oito meses, desde que ele chegou a Pipa após mochilar pelo Brasil desde Neuquén, bela região montanhosa da Argentina. Era um cara muito gente fina, tínhamos ideais políticos similares; mas não dá pra gostar do namorado da mulher que você queria transar há um minuto a decepção não permite. Conversava incomodado, tentando entender qual o papel de cada um naquela cena. Mas sabia que Amanda dirigia o teatro. E sorria.

Comprei um pão integral e eles explicaram como o faziam. Fingi atenção e despedi-me. À noite, festa no hostel, algumas gringas e outras brasileiras prometiam uma noite divertida. Conversava com uma alemã quando Amanda chegou e se intrometeu na conversa. Em pouco tempo ela dominava a situação e a alemã desistiu e disse que iria ao banheiro.  Ela lançou: “Que tal um passeio na praia?”

Às vezes uma pergunta carrega muito mais respostas que dúvidas. Disse não, que estava bom ali. Ela ficou surpresa e sorriu: “Não seja tão certinho, eu e Paco temos uma relação aberta” , “E o Paco sabe disso?” , ela sorriu de novo: “Claro! Porque amar tem que aprisionar? Somos livres.” Aproximei-me, fiz um  pequeno silêncio e disse ao seu ouvido : “Peraí que vou ao banheiro”. Ela fez bico com a boca, um bico desapontado que me fez gargalhar. Antes, passei em meu quarto pra pegar camisinhas. Mas saí do banheiro com a certeza que a evitaria. Um grupo passou com um violão e me chamaram para um luau na praia. Fui. Quando voltei ao hostel, Amanda não estava, mas Paco sim. Entrava em um quarto abraçado com a alemã que antes conversava. Deitei sozinho com um sorriso irônico. É a vida.

Dia seguinte passei o dia escrevendo. Só saí do hostel pra caminhar no fim de tarde e ver o sol sumir. Era noite quando passei de propósito na frente da padaria, mas estava fechada. Tinha perdido minha chance.

Até que ouvi um grito: “O pão! Vem comprar pão!”. Voltei e fui ao seu encontro, lento e sorridente. “Fugiu de mim ontem, hein!”, disse e meu deu um selinho. Meu sumiço tinha deixado ela excitadíssima. “Paco foi até Natal levar a alemã, só volta amanhã. Quer passear na praia?” Sorri de novo: “Não, prefiro aprender a fazer pão”. E entramos na padaria.

Leave a comment