– Que te provoca?
Foi assim que o garçom perguntou o que eu gostaria de comer. Creio que foi a maneira mais interessante que ouvi. “Já escolheu?” ou “o que vai pedir?” transformaram-se em frases protocolares, apáticas e sem sabor. Se um dia ouvir “E aí, que vai ser?”, é justo levantar e ir-me. “Que te provoca?” pareceu um convite ao desejo gastronômico, que trafegou do inconsciente do estômago até a memória do paladar. Os olhos vidrados no cardápio encantaram-se pela imagem da Bandeja Paisa. Pedi. “Ótimo pedido. E para tomar, uma cerveja?”, assenti e o senhor sorriu e partiu, e no seu sorriso já havia uma educada licença.
Acabara de chegar a Bogotá, capital da Colômbia. Era noite. Faltavam duas semanas para voltar ao Brasil e passar o Natal com a família. Tinha um bom dinheiro guardado e resolvi ser folgado. Fui para um hotel. Um hotelzinho velho e barato no bairro de Candelária, dizem que Fidel Castro se hospedou ali no final dos anos 50, antes da revolução. Dessa vez, nada de hostel com 8 pessoas no mesmo quarto e a possibilidade que conhecer um monte de gente. Queria uma cama, uma mesa e uma cadeira, ficar sozinho com o computador e as rememorações da viagem. Consegui, e como ficaria duas semanas, por um bom preço. Tudo certo, corri até o restaurante que o porteiro me indicou.
O prato chegou rápido, mal secara o primeiro copo de cerveja. Parecia que desembarcava em Minas Gerais: arroz, feijão, ovo frito, carne moída, linguiça, torresmo, meio abacate, banana frita e uma arepa – popular pão colombiano. Em alguns lugares troca-se a carne moída por um bom bife. Farto, muito farto, mais indicado para almoço do que jantar, mas isso não me preocupava. Os garfos agiram vorazmente. A Bandeja é típica do estado de Antioquia, cuja capital é Medellín, uma das mais importantes cidades do país. Dizem que foi aceito como prato nacional a partir da década de 50, mas em 2005 foi oficialmente reconhecido.
Comi rápido demais. Não suei porque estava na serra e notava-se a presença do frio em novembro. Ouvi a porta de ferro do restaurante descer e anunciar que fechavam. Prontamente o garçom se aproximou e despachou qualquer pressa, puxando papo, perguntando de onde eu era, quanto tempo ficaria… Era um senhor redondo, olhos redondos, o rosto circular com bochechas indomáveis, o corpo redondo na mesma medida; o sorriso fácil, o olhar atento. Não estranhei quando ele pediu uma cerveja e disse aos outros que fecharia o caixa em alguns minutos. Era o dono, desde 1991.
De repente o papo caiu em história e política. Envergonhei-me ao dizer-lhe que pouco conhecia: Uribe, Farc, o país mais próximo politicamente dos EUA na América do Sul, Santos o atual presidente. “E o Bogotazo?”. Só ouvira falar, sei que o país ficou de ponta cabeça, mas não sabia o porque. Seus olhos brilharam:
– Eu era criança mas me lembro vivamente, meu pai era muito politizado e apoiava Gaitán, Jose Elécer Gaitán. 1948, 9 de abril de 1948. Essa é a data de seu assassinato. Gaitán era candidato a presidente e provavelmente venceria, tinha grande apoio popular o Partido Liberal. O relógio marcava 13 horas, ele ganhava a rua ao sair de seu escritório, para encontrar-se com um jovem estudante cubano chamado Fidel Castro, quando recebeu três tiros, dois na cabeça e um no peito. Um policial conseguiu prender um suspeito, Juan Roa Serra. Ele tentou protegê-lo da população refugiando-se em uma drogaria, mas a massa enfurecida o agarrou e o assassinou, seu corpo deixado na Praça Bolívar, em frente ao Palácio Presidencial. Com isso, ninguém sabe até hoje o que aconteceu. Foi Roa o assassino? Quem foi o mandante? A primeira pergunta ganhou outra: Roa tinha problemas mentais e comprou uma arma dois dias antes do crime, mas não sabia atirar. Como acertou dois tiros na cabeça e outro no peito, como um exímio atirador? A segunda pergunta ficou sem resposta.
– Foi então que aconteceu a violência generalizada…
– Exatamente. Eu só lembro que fiquei trancado em casa por dias. Tentaram invadir a Casa Nariño, a sede e residência do Presidente da República, houve saques em vários pontos da cidade, queimaram escritórios do governo até as armas do quartel da polícia foram roubadas. Todos culpavam os conservadores, que detinham o poder na época. Casas, universidades, o Palácio de Justiça, muitos lugares foram incendiados e o Exército tentava conter a população à bala. Muitos, muitos mortos no centro e na periferia de Bogotá. A cidade foi devastada pela luta entre liberais e conservadores. Esse período de distúrbios durou quase uma década, dizem que matou mais de 200 mil pessoas, chamamos de La Violencia.
Fiz mais algumas perguntas, inclusive quis saber seu nome. José. Nessa noite nos despedimos e ele me convidou para voltar no dia seguinte, para me contar a invasão do Palácio de Justiça, feita pelos Movimento 19 de Abril, o M-19, em novembro de 1985. Voltei e voltei algumas outras vezes nas duas semanas que fiquei em Bogotá. Deu sua opinião e contou vários episódios políticos de seu país. Nunca falou de sua vida, manteve-se um professor vivaz e atencioso, mas sua intimidade distante, guardada pela História. Nem seu sobrenome soube. Antes de partir, lhe agradeci: “Gracias por todo, maestro Jose”.