A ponte

encebollado

O encebollado aterrissou na mesa florida pela toalha. “Palmas!” Gritei e aplaudi sozinho. Todos pararam, me olharam sacaneando, riram e aí sim aplaudiram. “Tá mesmo com fome brasileiro! Você deu sorte! É o melhor encebollado da cidade! Feito pela cozinheira mais linda e mais brava do mundo”, brincou Marcos, tentando beliscar a bunda de Milagros, sua esposa.

O almoço foi animadíssimo, recheado de histórias familiares. Eramos eu e a família Rodriguez – Marcos, Milagros e Cristián, o caçula. Faltava Kati, a filha mais velha, que conheci na capital. “Vai até a praia e você fica com meus pais. Eles tem um restaurante e alugam alguns quartos à gente conhecida”. Fui. Fiquei emocionado com nossa empatia mútua. Contaram-me muito de suas intimidades, seja pintando um barco com Marcos e um parente, após jogar bola com amigos de Cristián, ao tomar café com Milagros. Temporariamente fui parte da família. Em todas as conversas repetiu-se um símbolo: a ponte. Parecia inevitável. Desde que foi inaugurada, há sete anos, seus mundos mudaram. Seu concreto estava entrelaçado às suas vidas.

Marcos me serve um copo de cerveja enquanto conta uma história de quando Cristián era bebê. Milagros é uma evangélica fiel. Já foi mais fervorosa. Faz reuniões de orações em sua casa, com ao menos 4 ou 5 amigas. Numa delas, entoavam canções quando Cristián levantou os braços e sorriu. Todas levantaram os braços e o incentivavam: “Jesus! Viva Jesus! Viva Jesus”. O menino era santo. Milagros tinha um anjo em casa. O menino dizia alguma coisa. Todas pararam para escutá-lo. Com os braços erguidos gritou:

– Goooooolllllllll!

– Esse é meu filhão! Ria-se Marcos ante a decepção da esposa.

Marcos queria explodir a ponte. Era pescador, como seu pai, seu avô. Gerações caladas, interrompidas pelo turismo. Tentou ir a outras praias, mas o peixe foi acabando em todos os lugares. Culpava a ponte e a industrialização da pesca. Vez em quando visita seu barco, que está há 50 Km dali. Atracado na areia. Com a especulação imobiliária e seus novos edifícios, tentou ser porteiro. Duas vezes. Não deu. Uma depressão agarrou-o. Ficou sem o chão que era o mar. A esposa sabia: fora valente. Procurou ajuda sozinho e hoje tomava medicamentos. Estava melhor e perdido.

Milagros me passa a pipoca e misturo-a com o ensopado. Costume que só encontrei no Equador: pipoca no caldo. Se alguém gostava da ponte e dos turistas que chegaram era ela. De dona de casa aprisionada à chefe de família. Ela atravessou uma ponte íntima. Do outro lado encontrou liberdade – autonomia, mais que tudo. Abriu seu restaurante. Tinha uma vida. Sentia um cansaço feliz quando deitava. O que lhe desafiava a paciência era Marcos. Sem emprego, ficava que nem mosca rodeando o restaurante, dando palpite. Era a lei antiga. Era o marido: achava que mandava. Mas aquele era seu espaço. Reinava. Agora lutava pra manter seu reino independente. Discutiam. A cozinha, onde ele não entrava, acostumara-se a escutar suas queixas. Sentia saudades da filha.

Kati, a filha mais velha que encontrei na capital, atravessou a ponte para nunca mais voltar. O primeiro cara ¨estrangeiro¨ que conheceu virou seu namorado e tempos depois partiu para estudar jornalismo. Viviam juntos sem casamento. A praia era um lugar de férias. Milagros sempre quis que fosse enfermeira. Forçou-a de todas as maneiras. Até conseguiu uma bolsa com um amigo. Foi nesse período que brigaram e de certa maneira separaram-se. Kati ligava de vez em quando. Falavam-se pouco, nunca tinham grandes novidades uma a outra. Para não perder a bolsa, Milagros fez o curso. Dois anos. Percebeu: era ela que queria ser enfermeira. Transferira seu sonho à filha. Admitia. Seu espelho sabia, mas Kati nunca soube. “Até hoje não entendo porque estudou, desmaiava toda vez que via sangue, acredita?” lembra Marcos. Formou-se. Nunca exerceu a profissão.

“Come mais devagar menino!Esse tem uma fome ancestral.” A mãe repreende o filho, que responde: “Eu já estou comendo devagar. Você não sabe como é quando você não está” e ri. Cristián. A ponte pra ele era uma incógnita. Não sabia se a atravessava ou a explodia. Não tinha profissão. Terminaria o colégio no fim de ano. Tem 17. Tentou trabalhar em hotéis, mas não tinha inglês. Sobrava a faxina. Nas obras, era aprendiz. Distribuiu panfletos turísticos para a prefeitura. Todos salários muito baixos. Era o líder de sua turma. Qualquer trabalho não servia. Seu orgulho o cegava. Fumava maconha, mas sua mãe não podia nem desconfiar. Quando pequeno queria ser pescador como o pai. Agia como se esperasse o futuro bater à sua porta. Enquanto não chegava, trabalhava como garçom no restaurante. Na maior parte das vezes de mal humor. Só mulheres bonitas o faziam sorrir.

Acho que fui contaminado pela tal fome ancestral. Todos riram quando repeti pela terceira vez. Milagros disse que primeiro refogou alho, cebola, pimentão, tomate. Coloca-se água na panela e põe-se o peixe, de preferência de carne vermelha, atum ou um de seus parentes. Em separado, cozinha-se a mandioca. Tira-se somente o peixe e o corta em lâminas para depois juntá-lo com a mandioca já cozida. O caldo de tomate é batido no liquidificador. Misturam-se todos os ingredientes e acrescenta-se um molho de cebola crua, limão, coentro e pimenta. Pode ficar mais seco ou com bastante caldo, como uma sopa, como era o gosto de Milagros.

Elogiei a comida uma vez mais. Fez-se o primeiro silêncio do almoço. Foi então que Marcos contou quando um barco em que trabalhava virou em alto mar. Agarrou-se a um galão de plástico e rezou. Era noite. Só tinha o céu, os planctons e deus. Percebeu que deus era um desconhecido, por isso pensava na família para não afundar. Queria mais uma chance para vê-los. Não chorou porque o medo não deixou. Pela manhã outro barco o encontrou. Salvara-se. Quase chegando à praia avistou-os. Antes de pisar na areia já beijava a mulher e tinha o filho, com 6 anos, no colo. Kati, com 12 anos, passou uma semana grudada nele. Aquele momento trágico, entre a perda irreparável e o alívio inacreditável, ainda ecoava em seus corações. “Jamais vou esquecer esse dia”, disse com os olhos brilhando, olhando os olhos de sua mulher que também brilhavam. Cristián comia, fingindo estar mergulhado no prato. Segurava suas lágrimas.

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