O convite surgiu assim que terminou minha participação em uma oficina sobre o Brasil. Estava em uma ONG que tinha um projeto para adolescentes na periferia de Buenos Aires. Villa Fiorito. Pauli abriu os braços e brincou em portunhol: “Vem a mi casa e vamos fazer um assadinho”. Era mania as pessoas ao falarem português sacanearem nosso diminutivo.
A casa de Pauli era perto dali e distante duas do centro da capital portenha. Era quarta. Seria no domingo. Pauli se chamava Paula. Carregava um coração solidário. Vivia em um sobrado de três quartos, grande, mas não espaçoso. Dividia o lar com o marido, seus três filhos, uma sobrinha e a filha de uma amiga que, com problemas com drogas, ela resolveu adotar. Tinha seis braços: tudo passava por ela, todos lhe deviam amor e atenção e eram agradecidos.
Mal cheguei e já conversava na cozinha com seu marido Martín sobre as diferenças entre o churrasco brasileiro e o asado argentino. Basicamente, há quatro. Cada país tem seu corte próprio. O fogo eu prefiro à maneira argentina, que usa madeira (às vezes com carvão), mas sempre com as chamas em separado. Nada de repor o carvão e pairar aquela poeira preta na peça. Só as brasas dialogam com a carne, mantendo um calor constante. O ponto da carne. Há gosto pra tudo, mas a maioria prefere bem passado; no Brasil comemos mal passado, sangrando. E por fim o evento. Um churrasco no Brasil pode começar ao meio-dia e terminar às duas da manhã. Bebemos cerveja e ficamos petiscando. Aqui, petiscamos bebendo vinho e quando a carne está pronta, sentamos à mesa e comemos. A coisa se resolve em quatro, cinco horas.
Éramos doze pessoas. Martín preparava o fogo quando sua sobrinha de 10 anos passou pelo portão aos prantos. Um choro inconsolável, soluços impediam uma explicação. Até que ela disse: “o Chimi morreu”. “Onde?”, perguntou Martín. “Perto da ponte”, “Vamos até lá querida”. Pauli chegou, a sobrinha correu e a abraçou. Com minha cara de indagação, o marido me ajudou: “é o cachorro dela”. O filho mais velho ficou cuidando do fogo.
Todo Churrasco fomos até a ponte. O óbito foi confirmado. “E agora?”, perguntei. Pauli disse firme. “Vamos enterrá-lo”. Havia um terreno baldio que se transformou em cemitério canino clandestino . Martin pegou uma enxada emprestada com um vizinho e seguimos todos, em um cortejo regado a vinho. Logo na primeira enxadada, saltou um cheiro insuportável. Ali já havia um presunto. Alguns se afastaram. Martin começou a rir: “Tenho um pressentimento que hoje não vai ser fácil”. E começou a cantar um tango antigo. Ninguém o acompanhou porque ninguém conhecia a letra.
Pauli agarrou a enxada e disse algo como: “deixa comigo boludo”. Fez tudo sozinha, Procurou uma terra firme – e não foi fácil, parecia que o cemitério estava lotado, cavou, colocou o cão. Chamou a sobrinha e falou algo em voz baixa. Nos despedimos de Chimi, com uma salva de palmas e algumas risadas discretas. A menina me disse: “Tá tudo bem com ele agora”. Provavelmente fora envenenado.
Mal voltamos à casa e a vizinha gritou: “Pauli! Pauli! Chame aquele seu amigo médico!” Martin pegou um garrafão de vinho e disse “vamos”. Todo Churrasco entramos na casa. A filha da vizinha tinha uma reação alérgica após ser picada por uma vespa. Estava inchada e dizia que sua garganta estava fechando. Pauli a acalmava e falava no celular com seu amigo. Em dez minutos o médico chegou e foi reverenciado como um político em época de eleições.
Era enfermeiro. Precisaria de duas injeções. Martín me diz baixinho: “Como o caso não é de morte, vamos fazer logo esse churrasco. Tenho uma fome…”. Concordei. Parece que todos pensaram o mesmo.
Voltamos ao quintal da casa e o fogo já estava pronto. A vizinha e a filha chegaram e todos a cercaram de cuidados. Carregamos o sofá da sala até o quintal e o oferecemos. Sentaram-se felizes pelo respeito. A sobrinha brincava e já tinha esquecido do cão enterrado. Ajeitamos as linguiças e duas peças grandes de vacio na churrasqueira. Para enganar a fome, pão com salada de batatas e todos os salgadinhos possíveis. Agora a coisa andava.
Enchia mais um copo de vinho quando um dos filhos de Pauli apareceu gritando: “o Gabi caiu de skate! O Gabi caiu de skate! Se machucou! Se machucou! Quando Todo Churrasco já nos preparávamos para sair à caça do acidentado, ele surgiu, mancando pela rua. Vixi, estava com todo o lado direito do corpo raspado. Entrou no quintal e Pauli expulsou a vizinha e sua filha do sofá. Assustaram-se, levantaram-se e foram esquecidas.
Começou o atendimento de primeiros socorros, a limpeza das feridas. O menino chorava. Tinha muito dor no braço direito. Fratura? Teriam que levar ao hospital para fazer um raio X. Martin se aproximou com um olhar irônico e disse. “Cara, vou te oferecer uma grande honra. Você será o primeiro brasileiro a fazer churrasco na Argentina! Toma! Faz do seu jeito, voltamos em duas ou três horas”. Passou-me o garfo, a faca e o pano do churrasqueiro, deixando-me sozinho no quintal enquanto Todo Churrasco acompanhavam o menino até o carro.