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Carapulcra com sopa seca

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“Festejo? Vocês tem que ir à casa dos Pastroiani”, sentenciou o motorista da van que me levava da cidade de Ica para o distrito de El Carmen, sul do Peru. Tento conhecer um pouco da cultura afro-latina em todos os países sul-americanos que visitei e El Carmen seria o epicentro da música e dança negra do país de Vargas Llosa.

Os negros que chegaram a Lima no século XVII vindos de Angola, Congo e Moçambique tocavam o festejo originalmente com tambores, depois foi introduzida a cajita, a quijada de burro (maxilares de burro, um instrumento que mistura reco-reco com matraca) e o cajón, seu instrumento icônico – que é peruano e o fantástico violonista Paco de Lucia o levou para o flamenco. Hoje já se toca com baixo, bateria, violino e Eva Ayllón é a cantora mais popular do gênero.

Perguntei ao motorista sobre os campos de algodão que margeavam a estrada. Ele disse que depois de séculos trabalhando como escravos, o governo cedeu esses campos para que as famílias africanas pudessem começar suas vidas. “Não, na verdade eles lutaram e tomaram as terras do senhores”, corrigiu-se. “Não tenho certeza, só sei que agora as famílias exploram os indígenas que descem dos Andes para trabalhar na colheita”.

Os outros passageiros insistiram e o motorista mudou o caminho pra me deixar o mais próximo da casa da família. Chegando lá, uma decepção: “Estão todos em Lima para um show, mas pode entrar”, avisou Jenifer Pastroiani e seus 20 anos. Mal começamos a conversar, um jovem da sua idade entrou. Falaram-se rapidamente e ele se foi. Assim que ele passou a porta, uma voz de matrona soou, chamando Jenifer. Ela pediu licença e sumiu na casa, deixando-me na sala ampla, repleta de instrumentos musicais, vários cajóns e fotos na parede, onde gostei de notar a presença de brancos, negros e indígenas. Parecia que o ideal da miscigenação chegara ao sul do Peru.

Voltou nitidamente contrariada. Fiz algumas perguntas sobre a família e o festejo e ela se esforçava para responder com atenção, mas seus pensamentos a traíam. Perguntei onde poderia almoçar e ela indicou um restaurante duas quadras dali. Aproveitei e convidei-a. Ela sorriu e aceitou.

O lugar era simples com gente simpática: promessa de boa comida. No cardápio encontrei o prato que atiçava minha curiosidade desde que cheguei à região: carapulcra com sopa seca. Expliquei que no Brasil o nome soaria estranho. Carapulcra é pouco convidativo e sopa seca é surrealista ou, tentando esticar o entendimento, é um caldo com pouca água, “a sopa está seca”. Não expliquei bem e ela não entendeu direito. Pedimos o prato e uma cerveja pra desafiar o sol forte das 13 horas. Foi seu momento para desabafar.

Ela achava um absurdo. Uma de suas avós brigava com ela porque ela namorava um negro. Sua família sempre foi miscigenada, tem parentes brancos e indígenas, o sobrenome italiano provava. Porém, exista uma tensão racial na família. Sutil, mas existia. Um exemplo seria sua geração só se casar ou namorar com brancos ou mestiços. Nenhuma de suas irmãs, irmãos, primas ou primos namoravam negros, só ela. E o que acontece? A avó cozinha críticas. Pra ela havia racismo dentro da família sim.  Contou-me o seguinte diálogo: uma neta pediu café. Uma avó deu. A neta disse:

– Só não conte pra minha mãe, tá vovó?

– Por quê?

– Porque ela disse que seu eu tomar café eu vou ficar negra.

– Ela disse isso?

– Disse.

– E você não quer ficar negra?

-Não sei, eu só quero café.

“Ao menos meus pais não se importam com isso. Eles dizem pra tentar entender minha avó. Ela é de outro tempo, quando o preconceito pesava mais que hoje, quando ser racista era costume aceitável. Bisnetos com pele mais clara sofrerão menos, é isso que passa na cabeça dela. Até compreendo sua dor, mas é um absurdo ela se intrometer na minha vida”. Parou quando chegou a comida.

A carapulcra é um cozido de lombo de porco, um tipo de batata chamado papa-seca, ají especial (não descobri o especial) e amendoim. A sopa seca é um talharim com molho à base de manjericão, caldo de frango, alho cebola, cominho e pimenta. Na carapulcra, refoga-se cebola e alho, depois acrescenta-se o ají especial, que garante a cor marrom do prato; lombo, papa-seca em pequenos pedaços e amendoim: pode alongar os talheres. É servida com um pedaço de mandioca cozida. Na sopa seca, usa-se a mesma base de alho, cebola e ají, depois chega o manjericão. O macarrão é cozido diretamente no molho, não em água separada. Pode ser acompanhada  por um pedaço de frango. É uma ótima combinação. Dizem que é um prato inca e o amendoim foi incorporado com a chegada dos africanos. O macarrão é influência dos italianos que chegaram no século XIX, quase um pesto sem canoli. O prato resume a história do sul do Peru.

Enquanto comíamos ela me perguntou bastante sobre o Brasil, sobre o samba e a história dos escravos no país. Trocamos similaridades. Pratos limpos, ficamos em silêncio, até que ela olhou a porta e ficou séria. Era o namorado com cara de poucos amigos. Ela o convidou para sentar, ele recusou. Ela foi até a porta e disse poucas e discretas palavras, o suficiente para ele tomar uma cerveja conosco. Tentei puxar papo. Ele resistiu no começo, mas o cara era boa gente. Logo o ciúme baixou e conversamos normalmente. Ao despedirmos ele disse: “em dois dias vou tocar em Ica. Você está convidado”.