Bicicletas em Buenos Aires

empanada

A cena se repetiu três vezes. Fazia o jantar na cozinha de um hostel em Buenos Aires quando ele passava e deixava sua bicicleta em um quarto. Cumprimentávamo-nos. Até que um dia ele perguntou o que eu cozinhava. Deu sorte. Fazia um arroz com frutos do mar, frango e porco. Uma paella de mentira, sem açafrão. Ofereci um prato. Ele aceitou. Seu nome é Clemente. Perguntei de onde era: “Aqui de Buenos Aires”. “Ué, e o que faz hospedado em um hostel?”. Sacou um vinho da mochila e disse: “É, acho que vamos precisar disso”.

Clemente morou toda sua vida no bairro de Almagro. Sempre gostou de viajar. Conhece parte da América do Sul e da Europa. Viajava para atiçar o olhar e os pensamentos. “Ia morto, voltava vivo”. Sua última mochilada foi pela Bolívia. Tanto preconceito, tanta gente desprezando esse país e ele voltou encantado com suas paisagens, cultura e gente. E indignado com sua pobreza, a mesma pobreza que assola a periferia portenha e todas as grandes capitais.

Desembarcou em Buenos Aires cheio de ideias e olhares. Percebia que tinha outro ritmo. Caminhava enquanto os outros corriam. Enxergava novidade a cada esquina. Sentia que tudo era acaso e possibilidade. Isso na primeira semana. Na segunda menos. Na terceira, esse sentimento era como um e-mail que se deixa pra responder depois. Na quarta semana, finalmente era um brinquedo guardado em uma caixa no porão. A metrópole o mastigara.

Quando a prefeitura inaugurou um bicicletário perto de sua casa, lembrou que tinha uma bike empoeirando no lar de seus pais. Em um domingo foi até lá, deu um trato e saiu pelo bairro. Um arrepio lhe atravessou quando aquele sentimento escondido reviveu: Buenos Aires era incrível.

Foi assim que nasceu a ideia: seria turista em sua própria cidade. Escolheu o hostel, pediu uma semana de férias, pegou a bicicleta e partiu. Passou esses dias reconhecendo os quatro cantos da cidade. Foi até Tigre, La Boca, Barracas, Flores. Ele gostava muito de rock e conheci boa parte da cena “under”, como eles dizem. Fui com ele a um show de uma banda e percebi que seus amigos riam quando perguntavam como estava a vida de turista. Ninguém entendia.

O domingo era seu último dia. Perguntei se podia ir junto. Ele não sabia o que fazer. Lancei a ideia de irmos até a Reserva Ecológica da Costanera Sur e depois ir a Feira de Mataderos. “Tá animado, hein? É longe… você consegue?”. Respondi sem pensar: “Óbvio!”.

Nos encontramos às 9 da manhã. Buenos Aires dormia. Todas as avenidas vazias e cheias de outono, com as folhas secas bailando nas calçadas. Antes de começar, uma medialuna e um café. Doce vício matutino. Pegamos a Avenida de Mayo, cruzamos a 9 de Julho, passamos pela Plaza de Mayo, Puerto Madero, a Costanera, e enfim a Reserva, um baita parque bem perto do centro.

Dizem que era um aterro e que o tempo se uniu com a natureza para transformá-lo em parque. O governo só pôs a placa e uns bancos. Não confirmei a informação. Demos um grande rolê. Depois sentamos e fumamos com a companhia do Rio da Prata. Lembramos dos voos da morte, quando a ditadura arremessava de aviões os militantes de esquerda ainda vivos e amarrados em suas águas.

Saímos daí já era quase meio-dia. Dividimos um choripan, um sanduíche de pão com linguiça tradicionalíssimo. Agora, Feira de Mataderos. Voltamos até avenida de Mayo, passamos pelo Congresso e pegamos a Avenida Rivadavia. Dá-lhe Rivadavia até o final. Passamos uma ponte e entramos na Avenida Eva Perón. E dá-lhe Eva. Já estava morto quando passamos pelo antigo matadouro da cidade em Liniers e aí sim, Mataderos e sua fantástica feira. Ficava perto do hospital inacabado onde foi gravado o bom filme argentino Elefante Branco, com o onipresente Ricardo Darín.

Como eu gosto da Feira de Mataderos: aqui se celebra a cultura do campo argentino, de Norte a Sul. No palco um senhor contava causos e apresentava as bandas. Era a Inezita Barroso de poncho e bombacha. Música ao vivo tocando o Zamba (pronuncia-se Samba e é lenta, romântica, para dançar com seu par), muita gente com a roupa de gauchos (nossos gaúchos) bailando chacarera. Havia um jogo chamado Carrera de Sortijas. Um gaucho tenta tirar um anel de um poste com um lápis em veloz cavalgada.

E muita comida: empanadas de Tucumán (de carne ou frango com ovos), locro (ensopado com abóbora, feijão, milho e carne de porco, prato obrigatório nas datas pátrias) e asados (nosso churrasco). Comi de tudo. Duas empanadas primeiro, depois um locro e ao fim um vaciopan (sanduíche com carne de churrasco) Tudo isso acompanhado com vinho patero, vinho de mesa do campo. Tempos depois, Clemente encontrou uns amigos. Compartilhamos um mate. Quando um deles disse que estava voltando ao centro e oferecia uma carona, só me restou uma pergunta: “cabe uma bicicleta no seu carro?”

1 thought on “Bicicletas em Buenos Aires

  1. Obrigada pela visita ao NacoZinha!
    Comida sempre rende muitas histórias e é um deleite transformar isso em crônicas, o que você o fez muito bem.
    Um abraço.

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